Mestrado defendido na Paraíba aponta o domínio do latim como recurso para a distinção social
Para tristeza dos saudosistas, a língua latina - tida como língua morta - deixou há tempos de ser matéria obrigatória na formação dos brasileiros. Mas seu prestígio segue reconhecido, sobretudo por ser a língua oficial da Igreja Católica, e por sua presença no Direito (Dura lex, sed lex).
É esse mesmo idioma que o linguista Francisco de Freitas Leite analisou em cartas de pessoas do sul do Ceará, compostas entre a segunda metade do século 19 e a primeira do 20. Na dissertação de mestrado O Latim em Cartas do Cariri Cearense - defendida na Universidade Federal da Paraíba -, mostra-se como, a despeito do que já há tempos muitos dizem, o latim não morreu.
Latim rima com Cariri? Supomos que essa pergunta seja comum a muita gente que se depara com o título dado por Leite a seu estudo. Parece haver um contraste entre o imaginário construído sobre a pouco acessível língua latina, privilégio de uns poucos doutos, e a sonoridade indígena - e, portanto, bastante brasileira - do nome "Cariri".
Com vistas a situar o leitor menos versado na história e geografia do Estado do Ceará - e, consequentemente, desfazer o preconceito segundo o qual o latim ali surge como algo exótico -, dedica-se na dissertação um capítulo inteiro ao contexto histórico, sociocultural e educacional caririense.
Segundo Leite, a região, do sul do Ceará, compreende importantes cidades, como Crato e Juazeiro do Norte. Na primeira, o Movimento Libertador de Pernambuco, apoiado por ricos e influentes fazendeiros da localidade, proclamou em 1817 uma república, cuja duração, porém, não passou de oito dias. Em sua vizinha Juazeiro, teve lugar o polêmico milagre da hóstia que se transformava em sangue de Cristo, desencadeado pelo padre Cícero Romão Batista, o "Padin Ciço", um dos autores das cartas e telegramas analisados.
Os ricos produtores e os religiosos integravam uma elite do Cariri, não só pelo peso político - o próprio padre Cícero chegou a ser prefeito de Juazeiro do Norte -, mas pelo acesso à cultura: a falta de um governo que pudesse prover o ensino laico a todos os cidadãos era um dos motivos pelos quais, nos moldes do que se passava na península Ibérica na Idade Média, os seminários fossem centros de formação, educando os futuros clérigos e os filhos da classe privilegiada. Como até hoje a língua é idioma oficial do Vaticano, não é de espantar que aulas de latim fossem obrigatórias na educação oferecida àqueles jovens.
Todo esse rico cenário sociocultural foi considerado por Leite ao se debruçar sobre um conjunto de 55 cartas, selecionadas para empreender sua pesquisa. O foco, em poucas palavras, era compreender por que em certas circunstâncias se usava o latim em vez da língua vernácula. Perguntas como "quem escrevia em latim?", "para tratar de que tipo de tema?", "visando a obter quais efeitos?" nortearam a análise linguística sobre os documentos.
Para buscar respostas, o autor dividiu as cartas segundo certos critérios. Para que se pudessem identificar contextos de favorecimento ao latim, um dos grupos era formado por cartas sem qualquer uso do idioma. Outro critério analisado foi se o latim aparecia só na saudação inicial e/ou na despedida (por exemplo, a expressão Et orabo ad Dominum ["E orarei ao Senhor"]). Foram agrupadas cartas em que o latim aparecia em frases feitas, como provérbios ou expressões consagradas (numa carta se lê, à ocasião de agradecer, verbo et opere ["com palavra e obra"]). Fora esses casos, foram encontrados documentos escritos integralmente em língua latina.
Uma constatação - esperada - foi que as expressões latinas eram recurso explorado por uma elite, a quem foi facultado acesso ao ensino formal e, portanto, a uma das línguas de cultura da época (a outra era o francês): em 91% das cartas nas quais se recorria ao latim, o enunciador era indivíduo com alto grau de escolarização.
Outra constatação - das mais instigantes da pesquisa - foi a de que, mais que o emissor, o destinatário era fator fundamental para que o missivista se valesse ou não de conhecimentos de latim: nesses 91% de cartas com uso de latim, também os receptores tinham elevado grau de instrução. Como observa o autor, as expressões latinas iam muito além dos significados referenciais "Jesus Cristo seja louvado" ou "orarei ao Senhor", por exemplo. Diziam algo como "cumprimentemo-nos numa língua reservada a uns poucos da elite cultural e pela qual podemos também nos identificar".
Pensando em identificar valores sociais no uso do idioma, Leite aponta que nesse conjunto de 91% de cartas, os destinatários eram, além de eruditos, religiosos. Para o pesquisador, esse dado revela o tom cerimonioso assumido por esses usos. É como se o enunciador reconhecesse a língua latina como adequada para prestar reverência à "santidade" de seu enunciatário.
Leite constatou que indivíduos com alto grau de escolarização não faziam uso do latim quando tratavam com enunciatários menos escolarizados. Na hipótese aventada por Leite, um dos fatores responsáveis pelo fenômeno era o receio do enunciador de soar pedante frente a seu receptor. Nessas circunstâncias, demonstrar o precioso conhecimento daquele idioma não cumpriria o melhor efeito possível. Eram ocasiões em que o bom-senso recomendava que o emissor "não gastasse o seu latim", de onde, na hipótese de Leite, adveio essa expressão popular.
O Latim de Padre Cícero | |
Em um telegrama, todo em latim, enviado a papa Leão XIII, em 2 de junho de 1896, padre Cícero coloca o Papa na posição de Jesus Cristo para fazer um pedido. Por isso, a forma do texto é como a de uma prece. | |
Sanctissime Pater | Santíssimo Padre,
Padre Cícero Romão |
Por Henrique Braga e Marcelo Módolo
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